segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Uma tentativa de Conto...


Filhós e chá gelado

Pôs o telefone de volta na base. O clique e a luzinha vermelha acusaram, cada qual em sua função, o acolhimento do aparelho que, segundos antes, possibilitou-o saber a notícia serpenteante e ferina. Engolida a traumática mensagem, que desceu pela garganta como cacos de vidro, a mala logo foi jogada sobre a cama. Roupas aleatórias são postas dentro enquanto, novamente por meio do telefone, um bilhete era comprado.

A estação estava repleta de pessoas e suas bagagens. Cada passo apressado para o portão seis, do outro lado daquela construção inspirada na Gare Charles de Gaulle era penoso. As famílias iam ou voltavam das férias, os casais enamorados, os homens de casaca... Tantos sorrisos. Duas lágrimas. Enfim, o portão. Vencido o embarque, apenas uma corrida pelo corredor estreito povoado com roupas sem corpos e sem faces precedeu o ríspido encontro com a poltrona. Olhos na janela. Mil e uma lembranças de um tempo quase morto que agora revive. Uma mão macia, os filhós com chá gelado, as estórias para crianças levadas, o sorriso no altar, o abraço quente quando o “para sempre” chegou ao fim. As imagens se sucediam. Foi assim por toda a madrugada.

A mão da mulher de fortes rugas sobre o ombro trouxe de volta à luz do dia olhos que viram tanta escuridão quando o passado acabou e não havia um presente. A antiga estação de ferro inglês com suas paredes amarelas foi esquecida pelo tempo. Depois, já no assento de um Ford, veio a certeza de que toda a cidade permanecia como desde sempre. Os dedos enrijecidos maceravam a correia da mala ao longo dos vintes minutos no automóvel e provocaram um dano irreparável naquele artigo de couro italiano... A casa! E os reais. Mais duas lágrimas.

O hercúleo esforço para manter a razão e a emoção em proporção equilibrada necessitou um cumprimento mudo e “en passant” para os parentes e conhecidos distribuídos na sala arcaica. A mesa da cozinha trouxe à mente o cheiro forte daquele café grosso, quase mastigável, tomado antes de o sol sair. Quando viu a porta do quarto tão almejado, aumentou o ritmo do passo. Padre António vinha saindo. Trazia um crucifixo em uma das mãos e na outra um chapéu de palha. Nos lábios: Kyrie Eleison. Uma benção silenciosa através de um aceno. A porta. E ela.

Da porta para o pé da cama em um só fôlego. Um abraço apertado nas carnes moles que a lembrança conservava rijas. Vovó Ia. A avó negra, filha da seca que chegou a esta casa para criar uma moça fina e acabara por criar esta, seus filhos e, por fim, seus netos. Não foi mão dos seus para ser maternal com os filhos de outras. E quanto amor!

- Vovó Ia! Que susto me deste no coração...

- Ô meu filho, meu filinho, não foi dessa vez. O peito ainda bate.

- Desculpe-me a demora. Não foi por falta de saudade.

- Saudade é bicho bom! É o que me fez esperar para te rever aqui.

- E eu vou me demorar, viu?! Tem muito passado nesta casa...

Com um novo beijo, dessa vez nas mãos, afagaram-se. Após isso, desbravaram o passado, conjecturaram o futuro na plena construção de um presente. Presente este que poderia não estar sendo possível de se escrever. Foi por pouco.

- Filhinho, o que você acha de uns filhós?

- A vó, só se tiver um chá gelado!

- É pra já!


Eduardo Henriques

Um comentário:

  1. Que história nostálgica meu amigo, sem dúvidas as lembranças são fortes. Nós nunca esquecemos o que vivemos, principalmente se envolve a nossa família. È um belo conto, devemos sempre lembrarmos do passado, pois ele faz parte do que somos no presente.

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